O festival Doce Maravilha voltou ao Rio de Janeiro para sua segunda edição, com altas expectativas daqueles que escolheram acreditar em sua qualidade e compromisso em nome da apreciação de uma excelente curadoria musical. Infelizmente, os cariocas foram novamente castigados por um tempo cinzento e chuvoso, mas o cenário estava estruturalmente preparado, e isso não impediu ninguém de aproveitar ao máximo as lendas da música brasileira que estiveram nos palcos.
Dia 1
Os Garotin, diretamente de São Gonçalo, inauguraram o Palco Elo de forma brilhante, fazendo todo mundo soltar o corpo e a voz. Depois, aqueles que apreciam uma boa discotecagem foram agraciados com o luxo de poder escolher entre sets de Jacquelone e Vhoor, dois mestres da música eletrônica tocando simultaneamente em cada palco. A curadoria do festival fez excelentes escolhas de DJs para assumirem os palcos entre os shows, contando com artistas que trabalham com diversos projetos inovadores para a música eletrônica brasileira, e com sets para todos os gostos.
A princesa internacional lusófona Mayra Andrade foi quem tomou conta do palco depois, com uma lindíssima apresentação e fazendo com que todos se sentissem em casa. Sua convidada especial foi Rachel Reis, cantando juntas “Manga” e o cover de “Tigresa”, de Caetano Veloso. Ter as duas juntas no palco foi de um luxo enorme.
A apresentação de AYABASS no Palco Doce Maravilha juntou três nomes gigantes – Luedji Luna, Larissa Luz e Xênia França – para um espetáculo que uniu o repertório das três, e essa apresentação teve um toque especial: era aniversário de Luedji Luna, e todos cantaram parabéns! Todo o público demonstrava querer prestigiá-las cantando tudo junto, com destaque especial para “Banho de Folha”. A harmonia desse conjunto foi inesquecível.
Migrando novamente pro Palco Elo, Letrux apresentou um repertório diferenciado: algumas canções do álbum O Último Romântico de Lulu Santos, que contém praticamente todos os hits de sua carreira, e não teve como não mover o público. Além disso, também rolaram músicas autorais, com um pouquinho de cada um de seus três álbuns para agitar seu público que é bastante fiel. Para o fechamento de sua apresentação temática, não tinha outra escolha senão a simbólica “Tempos Modernos”.
Foto: Gommie / Vou de Grade
Um dos shows com a mais alta energia teve a infelicidade de ocorrer durante a chuva, mas mesmo assim o grupo ATTOXXÁ sustentou o pique do público do início ao fim. A força do pagodão baiano fez com que tivesse gente pulando o tempo todo, estimulados a não ficar parados nunca e dançando de um lado pro outro. E para quem imaginou que não tinha como ficar mais animado do que aquilo, a entrada do É O Tchan trouxe ainda mais energia, promovendo um encontro maneiríssimo de gerações do pagode baiano, e as icônicas coreografias de “Segura o Tchan” e “Dança da Cordinha”.
A Orquestra Imperial veio com uma linda homenagem a João Donato tocando alguns de seus maiores hits enraizados nos corações brasileiros, e ainda com um figurino chique e coloridíssimo para compor o clima da apresentação. Donatinho, músico e filho de João Donato, foi uma das participações mais que especiais desse tributo, assumindo os teclados e, excepcionalmente, os vocais em “Doralinda”, e ao lado dele, o gigante Marcos Valle, apresentando seu hit “Não Tem Nada Não” e outras canções. Para além dos arranjos impecáveis entregues pela orquestra, os convidados foram essenciais nesse show em forma de homenagem já que, junto com as canções, traziam histórias dos contextos em que foram compostas ou gravadas.
O mestre maior Jorge Aragão, além de apresentar as maiores de sua carreira como “Identidade” e “Já É”, também abriu espaço para diversos convidados. O primeiro, Djonga, cantou um samba com ele, e também “Fogo nos Racistas”. A segunda foi a deslumbrante Negra Li, que cantou “Eu Sei (Na Mira)”, e o terceiro, BK, que subiu ao palco para cantar a música em que participa com Jorge, “Inter’preta Cor”. Esses convites promoveram um lindo encontro de gêneros e gerações de artistas pretos, que abrem espaço para a continuidade um do outro. Ana Carolina foi a quarta convidada, cantando “Eu e você sempre” harmoniosamente ao lado de Jorge. Enfim, Xamã foi a quinta e última participação, apresentando um rap improvisado e depois “Tape Deck”. O volume de convidados acabou ficando excessivo e ofuscando um pouco a estrela do samba que tem muito a entregar quando em cima do palco, mas felizmente, em meio aos convites, Jorge ainda teve espaço para brilhar com suas próprias canções.
O artista mais aguardado da noite mostrou que realmente faz jus a toda essa expectativa – Jorge Ben é indiscutivelmente um dos maiores de nossa história musical. Apesar de ter prometido um show diferente com o anúncio de “É Coisa Nossa”, o repertório acabou sendo o mesmo dos últimos anos, mas sua entrada no palco ao som de “Jorge da Capadócia” não deixou de ser mágico em nenhuma medida. Ainda assim, algumas alterações foram feitas, como uma pegada mais reggae em “Zumbi”. Seu show é divertido para qualquer tipo de público, já que não há um brasileiro que não saiba cantar “País Tropical” e “Mas, Que Nada” de trás pra frente, e isso simboliza perfeitamente quem é Jorge Ben em nossa cultura. Se deixar, ele fica no palco durante 3 horas, emendando uma música na outra, sempre exalando poder e magia – e o público certamente embalaria na onda. Infelizmente, a apresentação planejada precisou ser cortada às pressas, e Jorge se despediu com uma versão diferenciada e maravilhosa de “Oba, Lá Vem Ela”. É um privilégio imenso poder presenciar sua magnitude nos palcos… Viva Jorge!
Foto: Gommie / Vou de Grade
No desfecho do primeiro dia, Criolo, Mano Brown e Rael assumiram a enorme responsabilidade de traduzir toda a força e representação do rap brasileiro em uma apresentação. O show começa com os hits atemporais que relatam e denunciam as vivências paulistanos – foram eles Não Existe Amor em SP, Subirusdoistiozin e Eu Sou 157. A partir dos clássicos, o show também conta com a participação de outros artistas, como Lino Krizz, que junto a Mano Brown relembrou músicas dos Racionais, até que a apresentação passou a girar em torno de grandes love songs, como “Envolvidão” e “Eu Te Proponho”. De cantinho, os grandes Jorges, Ben e Aragão, assistiram ao show na íntegra, e Djonga foi ao palco na lendária apresentação de Vida Loka pt.2. A missão foi devidamente cumprida, o rap brasileiro foi devidamente honrado num encontro inesquecível de gerações de artistas que constroem esse legado.
Dia 2
Por causa da chuva e da consequente remota possibilidade de cancelamento de shows, foi necessário chegar um pouquinho mais tarde no segundo dia. O público esteve diante de um difícil dilema entre arriscar-se na chuva ou optar pela desistência e reembolso do valor do ingresso, como foi possibilitado pela produção do evento. Para os que fizeram a escolha de viver esse dia de festival, certamente foram surpreendidos positivamente. Dessa vez, o festival estava muito bem estruturado para o tempo chuvoso, com o Palco Elo e praça de alimentação em área coberta, e o Palco Doce Maravilha sustentado por uma plataforma no chão, e pedrinhas na cobertura das áreas mais distantes. No fim das contas, o pior não aconteceu, não houve chuvas fortes, mas o festival merece o reconhecimento pelo devido preparo e precaução, dado tudo que aconteceu na edição passada.
Infelizmente não foi possível estar lá para ver, mas dá para apostar que o duo ÀVUÀ e o pequeno ícone Miguelzinho do Cavaco entregaram apresentações sensacionais. Apesar dos avisos de possíveis atrasos e cancelamentos, a programação do Palco Doce Maravilha seguiu pontualmente, e o DJ Marcelinho da Lua aqueceu a pista para a entrada de um grande nome da música brasileira contemporânea.
Ana Frango Elétrico, em turnê por seu aclamado álbum “Me Chama de Gato que Eu Sou Sua”, entregou um show super dançante mesmo na chuva. Dois artistas também promissores dessa geração fizeram participação especial em seu show. O primeiro, o alagoano Bruno Berle, cantou a queridinha “Insista em Mim” junto a Ana, além de apresentar duas de suas músicas autorais. Depois, o mineiro FBC, que se divide entre funk, rap e dance, fez sua participação no mesmo esquema – cantou “Dr. Sabe Tudo” com Ana, para então trazer seus hits autorais “Químico Amor” e “Delírios”. Esperamos ver essa combinação desses três juntos mais vezes!
Foto: Gaspar Detoni / Vou de Grade
No palco Elo, foi oficialmente inaugurada a temporada de festas juninas no Rio de Janeiro com a apresentação do grupo Falamansa, autores dos forrós mais memoráveis da música brasileira que certamente já rechearam momentos muito especiais de todos. O show foi animado, dançante e teve até quadrilha! Os destaques especiais vão para a participação de Lucy Alves e para a homenagem a Luiz Gonzaga, tendo até “Pagode Russo”!
A banda recifense Nação Zumbi está de formação nova, mas sempre rememorando o passado em suas apresentações, e no Palco Doce Maravilha foi possível presenciar a história. Em 2024, um dos melhores e mais celebrados álbuns da música brasileira, “Da Lama ao Caos”, completa 30 anos, e o público do festival recebeu um gostinho dessa celebração. É um show tipicamente agitado, e as rodinhas punk inevitavelmente se abrem. O toque especial dessa apresentação foi a convidada Lia de Itamaracá, ícone da cultura pernambucana e do maracatu, e sua entrada diminuiu a agitação para que todos apreciassem a beleza desse encontro geracional de quem compartilha o espaço de honrar toda a cultura de um povo. Depois de sua saída, o ritmo frenético voltou, e o show se encerrou com todos pulando ao som de “Maracatu Atômico”.
Ultimamente, os festivais têm adotado cada vez mais a estrutura de apresentação de orquestra com participação de artista, que não cansa de se mostrar um acerto. Nada disso foi diferente com a união de Nova Orquestra e Buchecha no palco Elo, numa entrega de hits absolutos e animados como “Só Love”, “Quero Te Encontrar ” e “Xereta”, que tempo chuvoso nenhum poderia abalar. A apresentação recebia o nome de Nosso Sonho, para honrar a trajetória belíssima que Claudinho e Buchecha viveram, e Buchecha esteve sempre emocionado ao lembrar de seu colega-irmão, que certamente fica muito feliz vendo tanta festa lá de cima. Seguindo a linha de representação do funk brasileiro, os convidados especiais foram Deize Tigrona e Gabriel do Borel, que cantaram junto a Buchecha, e depois apresentaram um dos maiores hits de Deize, “Injeção”, com Gabriel do Borel assumindo como DJ. Foi um encontro fantástico, com cada um dos três com sua devida contribuição gigantesca para a expansão do funk no Brasil.
Foto: Gaspar Detoni / Vou de Grade
Os Paralamas do Sucesso celebraram 40 anos do disco “O Passo do Lui”, que mais parece uma coletânea de hits, todos sementes que deram origem ao sucesso estrondoso que a banda conquistou no país. Apesar da temática do álbum, em que a banda tocou “Óculos”, “Mensagem de Amor” e “Meu Erro”, ainda deu tempo de apresentar músicas de outros discos, o que fez o show se tornar, em suma, em um show repleto de clássicos. Vale mencionar que, mesmo tantos anos depois, o talento dos integrantes segue íntegro, e todos dão aula de música ao vivo.
Enfim, o tão aguardado momento… a chuva resolveu dar uma trégua a todos que fizeram a sábia escolha de presenciar o acontecimento divino que é Maria Bethânia. Esbanjando fluência na língua materna dos deuses – a música -, Bethânia cria um estado de hipnose do público para com ela, deixando todos descrentes com a impecabilidade de seus vocais que perpassa tantos anos de vida vivida, e ninguém jamais se esquece da primeira nota que se ouviu vinda de sua voz. Sua entrada no palco já é arrebatadora por si só, e ela abre seu show com seu lado mais romântico, dessa vez fazendo uma surpresa ao desenterrar “As Canções que Você Fez Pra Mim” depois de muitos anos sem cantar ao vivo.
Foto: Gaspar Detoni / Vou de Grade
Seu convidado mais que especial Xande de Pilares subiu ao palco e não fez questão de conter a emoção de estar cantando junto a deusa que é Bethânia. Os dois cantaram “Sonho Meu” e “Diamante Verdadeiro”, e depois Bethânia assistiu de cantinho ao espetáculo que Xande deu sozinho, cantando sambas famosos como “Brincadeira tem Hora” e “Clareou”. Bethânia sempre deixa claro que não anda sozinha – para além da participação de Xande, a artista pediu salva de palmas pra Gal, homenageou Rita Lee cantando “Baila Comigo”, agradeceu sua família e, em “Samba da Bênção”, fez menção de bênçãos a todos os grandiosos nomes de músicos, fechando esse bloco dizendo “a bênção, porque eu estou sempre só começando”. Depois de performar canções que foram marcos grandiosos em sua carreira, passeando pelo romance, pela melancolia e pela dança, seu espetáculo se encerra em tom de celebração da vida. Xande de Pilares retorna ao palco para os dois cantarem “Tá Escrito”, e Bethânia enfim fecha com “Reconvexo”, deixando todos perplexos com tudo que presenciaram ali.
Foto: Gaspar Detoni / Vou de Grade
Mantendo o padrão do line-up de apresentações comemorativas, Capital Inicial foi convidado a celebrar os 25 anos de seu Acústico, contendo praticamente todos os seus hits, e contando com a presença dos convidados que estiveram na gravação original. O vocalista Dinho Ouro Preto reforçou diversas vezes como era emocionante reviver esse começo tantos anos depois, e essa emoção certamente atingiu o público, especialmente os que acompanham a banda desde seus primeiros passos. Zélia Duncan, artista e amiga pessoal de Dinho, esteve presente na gravação do Acústico e no palco do Doce Maravilha. Kiko Zambianchi foi o outro convidado, assumindo parte dos vocais de um dos hinos musicais brasileiros, “Primeiros Erros (Chove). O formato da apresentação funcionou tanto que os fãs já clamam por uma turnê comemorativa, então sorte dos que estiveram presentes para sentir esse primeiro gostinho.
Experiência
Ao todo, a experiência do festival foi excelente, e o fantasma do trauma da edição passada conseguiu ser devidamente contornado. O festival consegue se destacar naquilo que faz de melhor – trazer atrações incríveis, escolhidas a dedo por Nelson Motta. O formato de convites e participações especiais pode se tornar cansativo a depender do modo como é feito, mas as escolhas dessa edição foram muito bem encaixadas e promoveram encontros extraordinários de peças chave da nossa música brasileira. No fim das contas, foi uma linda forma de celebrar nossa cultura, e já deixando um anseio pela próxima edição!